quarta-feira, 6 de julho de 2011

Valorizando propensões

Stendhal, na verdade Henri Beyle, em seu clássico O vermelho e o negro, nos aponta um exemplo de má interpretação da personalidade e dos interesses de outrem:

"... procurou inutilmente Julien no lugar que ele deveria ocupar, ao lado da serra. Percebeu-o a um e meio ou dois metros mais acima, sentado a cavalo sobre uma das vigas. Em vez de vigiar atentamente a ação de todo o mecanismo, Julien lia. Nada era mais antipático ao velho Sorel; teria talvez perdoado a Julien sua frágil estatura, pouco adequada para os trabalhos de força e tão diversa da de seus irmãos; mas esta mania de leitura lhe era odiosa; ele não sabia ler.
'Foi em vão que chamou Julien duas ou três vezes.
'A atenção com que se entregava a seu livro, bem maior do que o barulho da serraria, o impedia de escutar a terrível voz de seu pai. Enfim, apesar de sua idade, este saltou lestamente sobre a árvore submetida à ação da serra e daí para a viga transversal que sustinha o teto. Um golpe violento fez voar no regato o livro que Julien segurava; uma segunda pancada também violenta, dada em sua cabeça, em forma de cacholeta, o fez perder o equilíbrio. Ia cair a quatro ou cinco metros abaixo, no meio das alavancas da máquina em ação, porém seu pai o reteve com a mão esquerda:
'- Muito bem, preguiçoso! Sempre lê seus malditos livros enquanto cuida da serra? Fique com eles à noite, quando vai perder seu tempo na casa do cura."

O vermelho e o negro foi publicado em 1830.

Nossa escola valoriza exatamente o comportamento do personagem Julien, concentrado, calmo e afeto às letras. Mas, infelizmente, somente este perfil. Sabemos que as propensões são tantas quantas as profissões. Mas nem sempre nos lembramos disso, não é? A professora maluquinha de Ziraldo nos mostra isso quando oferece a cada um de seus alunos uma medalha adquirida em concursos de

"... a melhor redação, a voz mais grossa, o melhor desenhista, a melhor mão para plantar flor, o melhor cantor, o mais engraçado, o que tinha a melhor memória... Só agora percebemos que, primeiro ela descobria uma qualidade destacável de um de nós e aí, então, inventava o concurso, segura de quem seria o vencedor. No fim do ano, todo mundo tinha ganho uma medalha. O último, parece, ganhou o primeiro lugar em cuspe a distância."


Gardner fez esta percepção de habilidades se tornar científica com a sua teoria de inteligências múltiplas. Apresentou à sociedade formalmente o que nossas avós já diziam: cada um é bom em uma coisa.

Mas a teoria demora muito a entrar no sistema. E a supervalorização da intelectualidade prossegue ferindo nossas crianças. Mais um alerta para psicóloga/os escolares: observar e ouvir os alunos com abertura para compreender suas facilidades e características além das dificuldades de vida que enfrentam. Mostrar à comunidade escolar quais são as propensões dos alunos que nos chegam pode mudar radicalmente a condução educacional tomada com o aluno.