quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Avaliações institucionais ou o despreparo dos psicólogos

Meus leitores sabem que parte da minha atuação profissional é dedicada à avaliação de alunos. Fazemos isso para ajustar as salas de aula e os atendimentos especializados disponíveis pela Secretaria de Educação do Distrito Federal às necessidades educacionais especiais dos alunos.

Para ser avaliado, um aluno deve ser encaminhado ao nosso serviço. Sim, burocracia. Enfim, creio que nenhum servidor público está livre desta grande praga.

Em meio a muitas fichas de alunos, fui questionada por uma educadora sobre a demora para avaliar os alunos de uma das escolas atendidas pela minha equipe. Ela expôs que acredita no auxílio de instituições particulares para avaliar nossos alunos. Apesar de questionar a validade de tais avaliações externas, eu ouvi atentamente a opinião da professora e discuti as dificuldades do nosso serviço. Ela, muito atenciosamente, buscou um relatório de avaliação feito, a pedido dos responsáveis pelo aluno, por uma faculdade de psicologia. O relatório foi considerado ótimo por ela e pela professora regente do aluno avaliado. Tem cinco páginas com muitas explicações sobre os instrumentos psicológicos utilizados.

A professora afirmou que o relatório descreve muito bem o aluno, que mostra quem ele é. Em que isto auxilia o trabalho em sala de aula? Uma ratificação de observação facilita o trabalho pedagógico? A descrição do comportamento do aluno segundo observações em laboratório ajuda a definir o método pedagógico a ser utilizado para facilitar o aprendizado de alguém? Que angústia dessas professoras foi suprida com este relatório? Vou pesquisar essas questões e postarei futuramente uma possível resposta.

Sobre o relatório, o primeiro parágrafo escrito sobre o aluno propriamente dito indica sintomas típicos de Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD). Como tenho achado muitos alunos dentro do espectro autista, achei que era imaginação, erro meu. Prossegui na leitura e não tive mais dúvida. Defronte a pilha de encaminhamentos sem avaliação, eu fui apresentada a um aluno que precisa de atendimento diferenciado e que não foi sequer encaminhado para minha avaliação. Sim, querida/os leitora/es, este aluno nunca foi encaminhado ao meu setor. Além desse problema, não há menção do diagnóstico vislumbrado por mim. Este aluno deve ser avaliado por um psiquiatra, já que somente um médico pode fechar o diagnóstico de TGD. A supervisora da estagiária que avaliou nosso aluno não percebeu a gravidade dos sintomas.

Aqui cabe a minha crítica mais forte: nós, psicóloga/os, saímos da faculdade sem saber avaliar o psiquismo de nossos clientes. Independentemente da discussão sobre rotular ou não uma pessoa, a preocupação com o melhor tratamento deve estar presente em nossas ações. Que formação damos aos psicólogos latentes? Apesar do fenômeno de medicalização da aprendizagem ser contundente e perigoso, alguns problemas são notados apenas na escola. E, como nesse caso, às vezes nem por ela.

Esta criança merece ser vista com outros olhos e é isso que nos oferece um diagnóstico. Uma pessoa que tem um transtorno global do desenvolvimento não apresenta marcadores físicos. Este é um problema do qual sabemos ainda muito pouco. Mas podemos dizer, por exemplo, que não é pirraça suas crises de agressividade; não constitui preguiça sua dificuldade em registrar; não podem ser considerados teimosia ou veneta seus momentos de isolamento.

Como expressei na postagem anterior (16.000) apresento aqui a minha angústia: a busca da pedagogia por não se sabe o quê, a falta de preparo da psicologia em oferecer um bom serviço, a ignorância geral que permite uma criança chegar à 4ª série sem ninguém desconfiar de um transtorno tão sério, a burocracia que emperra o serviço público, a grande demanda que representa uma escola para seu/sua psicólogo/a.

Esta postagem será revisada em breve!

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

16.000

Tradição deste blog é marcar o milhar de acessos.
Mais uma vez, e como sempre, agradeço a frequência e o acesso de todos e de cada um.
Este blog é escrito com muito carinho e, às vezes, com muita raiva e angústia.
Compartilho aqui minhas descobertas enquanto psicóloga escolar.
Meu objetivo é trocar com colegas e com alunos de psicologia que se interessam pela aplicação desta ciência nas escolas.
A intenção é o crescimento mútuo e constante.
Vicenza Capone

sábado, 5 de novembro de 2011

Possibilidades de gênero

Acabo de entrar em contato com o drama de uma pessoa que nasceu com um sexo, mas pensa, sente e age conforme outro gênero.

O corajoso João Nery nos apresenta o conflito em que vive desde os quarto anos de idade quando começou a agir conforme seu gênero: masculino. Ele mostra a rigidez da sociedade moderna em aceitar as pessoas como elas simplesmente são e como isto dificulta todas as ações de quem não se enquadra em seus preceitos. É muito complicado se colocar no lugar de João mesmo lendo o livro. Suas dificuldades são de todos os níveis: afetivo, físico, postural, relacional, profissional. Até ir ao banheiro é complicado. Ao ir a um banheiro feminino, João era expulso por demonstrar ser homem. No banheiro masculino, não é possível usar o mictório, esperar pela cabine era questionado pelos demais usuários. Nas ocasiões em que todos os homens vão às árvores, João sempre precisou de banheiro formal. Todos os conhecidos lhe cobravam uma postura feminina, mesmo tendo diante de si um homem.

João perdeu toda sua produção reconhecida socialmente ao decidir ajustar seu corpo à sua personalidade. Seu diploma, seus direitos trabalhistas, seu currículo, seu nome. Nasceu de novo. Recomeçou. Mesmo já estabelecido profissionalmente, João preferiu modificar seu corpo a prosseguir em desajuste com ele. Além disso, pode ser considerado um criminoso por ter alterado seus documentos ilegalmente para evitar constrangimentos (vê-se um homem que tem documentos femininos): falsidade ideológica.

Solicito que façam uma análise agora: diploma, carreira em ascensão, reconhecimento profissional dispensados por um corpo em conformidade com a sua auto-imagem. Imaginem o sofrimento por que passa esta pessoa!

Precisamos mesmo testemunhar o sofrimento atroz de alguém para que possamos aceitá-la por piedade? Não deveríamos compreendê-la e aceitá-la como é e receber sua oferta social sem cobranças preconcebidas?

Imagino que a/os leitora/es estão questionando porque resumo a história dramática de João neste blog de Psicologia Escolar. Explico: nossa sociedade é preparada na família e na escola. Minhas professoras costumam me encaminhar crianças que não seguem os padrões de gênero que demonstram. Gays, Marias João estão nas escolas durante a infância e nossos detectores de desvios os anunciam rapidamente. As crianças os apontam, desrespeitam. São pessoas que devem ser adaptadas, curadas, consertadas. E quem melhor do que um psicólogo para realizar tal ajuste?

Nós precisamos estar preparadas para esta demanda. O que diremos quando uma/um professor/a nos solicitar atendimento neste sentido? Entendemos que as pessoas têm direito de se manifestarem como são? Compreendemos que orientação sexual não é uma opção? Vislumbramos as possibilidades de gênero que o ser humano apresenta? Percebemos que a sociedade não oferece liberdade de ação, mas exige que se cumpram seus padrões? Sabemos que a fuga das normas sociais tácitas impõe sérias restrições e punições severas? Estamos preparados para nos colocar no lugar do ente que sofre ao invés de julgá-lo como todos os outros agentes sociais fazem? Que diferença a psicologia pode fazer para as pessoas de orientação sexual diferente do padrão estando dentro das escolas?

A professora de João sempre o aceitou sem dizer à família que havia algo errado com ele.

Indico a autobiografia de João W. Neri – Viagem solitária: memórias de um transexual trinta anos depois.