quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Segurança

Quem trabalha ou já trabalhou com criança pequena percebeu o quanto é repetitivo o comportamento deles em informar às professoras acerca das ações dos demais. Quando as crianças têm idade de entrar para a escola, já aprenderam sobre comportamentos certos e errados. Eles sabem perfeitamente identificá-los e justificá-los.

Parece até natural que os pequenos venham de cinco em cinco minutos dizer à autoridade local que este ou aquele colega fez isto ou aquilo que não deve ser feito. Esta ação, no entanto, é muito combatida nas escolas em que atuo ou atuei.

Sim, há momentos em que as crianças interrompem a aula para “dedurar” os colegas. A medida em que o tempo passa, as coibições são tão frequentes que o comportamento cede. A vigilância constante é muito percebida nos jardins de infância (crianças de três a cinco anos).

Ela ocorre também quando um aluno é repreendido. Neste caso, o pequeno aponta todos os colegas que estão fazendo algo como ele ou que já fizeram e quando. Há, entretanto, duas formas pelo menos de explorarmos esta ação.

A indicação de comportamento impróprio por parte de uma criança força uma ação do adulto. Significa uma solicitação de providência, um pedido de ajuda ou justiça. Assim, à professora é exigido afastar-se do seu fazer presente e tomar uma atitude em relação àquele pedido.

Se a professora atende a cada pedido destes, sua aula ficará bastante interrompida porque manter a atenção de vinte pessoas ao mesmo tempo não é nada fácil. Mais grave é pensar que o atendimento de cada pedido aumenta a probabilidade de novas solicitações por parte de toda a turma: a frequência do comportamento vai aumentar.

O comum é o adulto repreender a criança dedo-duro alertando-a do desconforto que seu comportamento trás para a professora e para o colega objeto. A ação é classificada como inconveniente, chata, fofoca. Em geral, se oferece a alternativa da/o pequena/o se focar em sua própria tarefa e não atentar para o que fazem os demais, incentivando-se assim o individualismo e a omissão.

Se um coleguinha risca a carteira na escola, uma criança de quatro anos logo chama a professora. Mas se nós, adultos, notamos alguém riscando um dos muros do nosso bairro, como deveremos agir?
Assistindo aos noticiários atuais, percebo os avanços em investigações policiais que utilizam a delação premiada. Ora, o que foi coibido por gerações agora é tratado como auxílio ao Estado. E, se pensarmos que o Estado somos nós, então o que nos foi ensinado a vida inteira como errado é, de fato, certo. Ou era errado e agora é certo? Ou é errado e a justiça nos premia por agirmos erroneamente?

Se a delação premiada beneficia investigações criminais, será que as professoras devem agir de modo diferente com seus alunos? Ou será que a justiça dos adultos não se relaciona com as ações na pré-escola? Será que um interrogatório em CPI não interfere na pedagogia?

Eu, particularmente, sou adepta da informação. Acho até que, sendo psicóloga, devo ser assim porque quanto mais ouvimos, mais condições temos de ajudar nossos clientes. Penso que uma sociedade em que todos somos fiscais uns dos outros funcionará melhor do que esta em que uma pessoa joga papel no chão ou fura um sinal e todos os outros fingem que não estão vendo.

Implicar-se em suas ações, preocupar-se em não perturbar a vida da pessoa ao lado, cuidar, zelar o bem público podem ser atitudes benéficas para o desenvolvimento desta sociedade.

Quando a professora diz ao seu pequeno aluno: “Já falei pra você se ocupar com a sua tarefa. Eu cuido da turma.”, ela diz também: “Só o que eu vejo importa.” Todos os alunos aprendem, assim, que fazer o proibido sem ser visto é permitido. Logo, cometer ato ilícito legalmente enquanto adulto não envolve nenhum problema, desde que ninguém veja e, se vir, quem sabe uma conversa resolve. “Talvez um cafezinho?”

Entendo que, sendo todos fiscais, as ações impróprias serão reduzidas até que a necessidade de fiscalização diminua intensamente. E não há risco da escola ficar enfadonha por este motivo: há muito mais coisas permitidas que proibidas.

Lembrando que uma premiação para as crianças muitas vezes é apenas uma palavra ou um gesto afetuoso.

Então as duas formas que exploro aqui ao interpretar esta questão são seguirmos nos omitindo e individualistas não prestando socorro quando algo vai mal ou respeitamos nosso co-cidadão que nos alerta sobre um comportamento indevido nosso. Talvez o grande clamor por mais segurança pública passe por este caminho. Uma rota de mais atenção um com os outros, com mais compaixão e solidariedade, em uma sociedade em que não seja necessário gritar “fogo” para receber ajuda em caso de assalto ou ameaça de estupro, como é orientado por policiais. Uma cultura onde um pedido de socorro seja ouvido e atendido prontamente ao invés de ser interpretado como sinal de risco de morte e fuga instantânea.